Escola, livros e cultura digital
A história da educação tem sido a história da nossa relação com os meios de comunicação. Seria difícil imaginar a escola tradicional sem a invenção dos livros. Bibliotecas e áreas do conhecimento se estruturaram graças às características da tecnologia gráfica, que permitiram organizar os livros em estantes temáticas. Sem essa estabilização seria impossível encontrar um livro. O livro enquanto tecnologia de comunicação e suas transformações são a base dos desafios da educação contemporânea.
Marshall McLuhan olha para as tecnologias de comunicação como um novo tipo de ambiente, “nós moldamos nossas ferramentas e somos moldados por elas”. Segundo ele, as escolas deveriam ajudar os jovens a lidar com as mudanças em seu ambiente cognitivo, no entanto, fazem o contrário: ampliam a confusão. Na maioria das vezes, tentando sufocar e ordenar a energia difusa e por natureza desconcentradora das tecnologias eletro-digitais. Estamos entre dois ambientes cognitivos: um é linear, visual e ordenado; o outro, semelhante ao universo da oralidade, é não-linear, acústico e simultâneo.
Do surgimento da escrita até a popularização da impressão dos livros, passaram-se muito mais séculos que de Gutenberg (séc. XV) até o surgimento do telégrafo (séc. XIX). Provavelmente estamos vivendo o ápice da transição da cultura do livro para uma nova cultura. A cultura digital pode ser entendida como uma intensificação da cultura elétrica. Desde o surgimento do rádio, vivemos uma intensa multiplicação dos espaços informativos, com isso o livro deixa de ser a principal forma de difusão da informação, deixando a porta aberta para outras formas de conhecimento e criação. A crise na educação, ante as mudanças tecnológicas, não é um quadro novo. Já em 1955, McLuhan nos alertava que:
A metrópole, hoje em dia, é uma sala de aula; os anúncios são seus mestres. A sala de aula é uma obsoleta casa de reclusão, uma masmorra feudal. (…) a Idade da Escrita passou. Temos de inventar uma nova metáfora, reestruturar os nossos pensamentos e sentimentos. As novas comunicações não são pontes entre o homem e a natureza: são a natureza [1].
Com a explosão da cultura digital, aumentou a tensão entre o ambiente cognitivo da cultura do livro e as novas formas da lidar com o saber. Mas, apesar de um inegável desgaste, o modelo clássico de ensino sobrevive. Ainda que com pequenas adaptações. Pode-se dizer que esse modelo sobrevive pela necessidade do convívio (entre os alunos), pela comodidade dos pais (que não podem assumir a educação dos filhos), pelo exercício da aprendizagem social da luta e da concorrência (o jogo de poder entre professores e alunos), entre outras coisas. Mas pouco ou nada sobrevive pelo prazer de criar, descobrir e conhecer.
Em 2009, Shelly Blake-Plock publicou em seu blog uma listagem [2] na qual enumera as coisas que irão se tornar obsoletas na educação, a partir dela podemos desenhar um panorama dessa transição. A primeira coisa que perde sentido são as mesas e carteiras e a forma como são organizadas. As salas de informática também perdem o sentido na época dos smartphones e tablets. Por outro lado, a lição de casa deixa de ser um complemento quando seus alunos estão on-line quase o dia todo e você pode conversar com eles a qualquer hora ou dia via redes sociais ou blogs. Os temas e assuntos das aulas não precisam mais estar presos em grades curriculares, o interesse pode ser o ponta pé inicial da pesquisa e do estudo. A wikipedia deixa de ser a inimiga e se torna mais um espaço para aprender e colaborar. Podemos reduzir, sem medo, a necessidade de papéis, cadernos e livros impressos, os tablets já estão aí (com isso também reduzimos as mochilas). O design das escolas pode ser repensado privilegiando os ambientes de convívio e lazer (como tem acontecido com as livrarias). Por fim, as reuniões com pais podem ser reinventadas e por que não? Agora a participação dos pais via rede pode ser integrada à comunidade da escola, assim, pais e filhos podem aprender juntos, colaborando com seus professores em ambientes cognitivos abertos e transparentes.
Todas essas mudanças são possibilidades. As tecnologias não agem sozinhas. Nós estamos diante de uma grande oportunidade, mas essas mudanças ainda dependem da nossa coragem e vontade. Segundo Pierre Lévy [3],
é uma ideia muito equivocada pensar que as tecnologias ou os ambientes digitais, por si só, impactam a educação. Você usa as tecnologias em um caminho traçado, em uma estratégia pedagógica, e isso é o mais importante. O impacto não é automático, não é universal. Se falamos de ambientes colaborativos, tudo depende da forma como o educador vai usá-los. A intenção pedagógica é o que, de fato, vai definir o impacto do uso da tecnologia.
O novo desafio da educação é um desafio de reinvenção de nós mesmos, educadores. Que educação queremos? É essa a pergunta que deixamos de responder quando culpamos as tecnologias por nosso fracasso.
Andre Stangl
Filósofo (UFBA), mestre (UFBA) e doutorando (USP) em cultura digital. Professor de Filosofia e Cultura Digital no ensino médio e superior. Atuando também em oficinas de cultura digital para crianças de escolas públicas de São Paulo. Atualmente sou pesquisador do Centro de Pesquisa em Comunicação Digital ATOPOS (USP) e professor na Pós-graduação em Jornalismo Cultural/Digital (FAAP).
[1] http://mcluhanflusser.wordpress.com/2010/03/19/cinco-dedos/
[2] http://teachpaperless.blogspot.com.br/2009/12/21-things-that-will-become-obsolete-in.html
[3] https://www.institutoclaro.org.br/entrevistas/para-levy-ambiente-comunicacional-e-educacao-para-a-tecnologia-sao-trunfos-para-construcao-coletiva-na-web/